A discriminação sob a ótica do direito

Maria Berenice Dias[1]

 

 

Sumário: 1. O direito desdobrado em gerações; 2. O perfil familiar convencional; 3. O panorama social atual; 4. A justiça frente aos direitos não legislados; 5. A responsabilidade da função judicial.

 

O mundo está cada vez menor. Os efeitos da globalização e a evolução tecnológica permitem saber instantaneamente o que ocorre em qualquer lugar. Basta lembrar que o mundo presenciou a queda das torres do World Trade Center em 11 de setembro passado.

E este mundo, agora chamado de aldeia global, vive em plena “era dos direitos”, para usar uma expressão de Norberto Bobbio. Nunca se falou tanto em direitos fundamentais, direitos humanos, universalização de direitos.

Passou-se a decantar em todos os quadrantes do planeta a necessidade do respeito aos direitos humanos, cuja violação gera retaliações e severas sanções por parte de organismos internacionais. A Constituição Federal do Brasil elegeu o respeito à dignidade humana como seu dogma maior, arrimado nos princípios da igualdade e liberdade.

Por tudo o que se diz, por tudo o que se proclama e defende, dever-se-ia estar vivendo a época de maior plenitude do indivíduo, por se encontrar aureolado por uma gama de direitos e garantias. Assim, imperioso que o Estado Democrático de Direito esteja dotado de mecanismos ágeis e eficazes para preservar o cidadão. As instituições sociais, cada vez mais imbuídas da necessidade de proteger o indivíduo e a própria sociedade, devem tomar consciência da necessidade de participar do processo de “humanização da humanidade”.

Todos juntos, instituições, estados e sociedade, adotando uma postura de agentes ativos, buscam a concreção da “liberdade” e da “igualdade” por meio da “solidariedade”. Essas três palavras-chaves não serviram só de lema à Revolução Francesa, mas identificam as gerações dos direitos, tal como vêm sendo os direitos desdobrados.

  1. O direito desdobrado em gerações

Em 26 de agosto de 1789, em França, foi editada a mais famosa declaração de direitos, a denominada “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, nomenclatura que o movimento feminista logrou substituir por Direitos Humanos.

O uso da expressão “declaração” evidencia que os direitos enunciados não são criados ou instituídos, mas meramente “declarados”, pois são direitos preexistentes, que derivam da própria natureza humana. Daí, serem direitos naturais, abstratos e universais.

O núcleo dos direitos fundamentais – chamados em um primeiro momento de direitos individuais – configura a primeira geração de direitos, tendo como tônica a preservação da liberdade individual e a busca de uma postura não-intervencionista, verdadeira imposição da obrigação de não-fazer ao Estado. Visava a libertar todos e cada um do absolutismo de um ou de alguns sobre todos. Originariamente, no plano político, para livrar do absolutismo do monarca e seus agentes, aos quais se opõe a liberdade individual irrestrita – o absolutismo da individualidade – que só pode ser restringida pela lei, expressão da vontade geral, estritamente em função do interesse comum. A primeira geração identifica-se com o direito à liberdade.

Os direitos econômicos, sociais e culturais que foram positivados a partir da Constituição de Weimar, de 1919, são tidos como de segunda geração: cobram atitudes positivas do Estado, verdadeiras obrigações de fazer, com a finalidade de promover a igualdade entre partes ou categorias sociais desiguais. Não a mera igualdade formal de todos frente à lei, mas a igualdade material de oportunidades, ações e resultados, protegendo e favorecendo juridicamente os hipossuficientes em relações sociais específicas.

Originariamente, para superar a questão social, desencadeada pelo capitalismo, esses direitos categoriais incidiram sobre a relação de trabalho assalariado para proteger a classe operária contra a espoliação patronal.

A segunda geração, voltada para as relações sociais, em que a desigualdade se acentua por um fator econômico, físico ou de qualquer outra natureza, identifica-se com o direito à igualdade. Continua o indivíduo sujeito dos direitos fundamentais. Porém, não mais como individualidade abstrata e absoluta, mas como integrante de uma categoria social em concreto. Tais direitos parciais garantem uma prestação do Estado a determinados indivíduos, a fim de promover a igualdade social, a igualdade como definida por Rui Barbosa, na célebre Oração aos Moços: a verdadeira igualdade, que não consiste em tratar igualmente os desiguais, mas em tratá-los desigualmente na medida em que se desigualam.

Os direitos de terceira geração sobrevieram à Segunda Guerra Mundial, reagindo aos extermínios em massa da humanidade praticados na primeira metade do século XX, tanto por regimes totalitários (stalinismo, nazismo) como democráticos (destruição de cidades indefesas, até por bombas atômicas). Na medida em que o gênero humano se mostrou técnica e moralmente capaz de se autodestruir, voltaram-se os olhos para garantir não o indivíduo contra o indivíduo, mas a humanidade contra a própria humanidade. Nesse momento, os direitos humanos, postos como direitos de toda a humanidade, internacionalizaram-se – o que delimitou a soberania estatal por meio da criação de sistemas normativos supranacionais – com o fim de reconstruir paradigmas éticos e restaurar o respeito à dignidade da pessoa humana pelo implemento de todas as condições gerais e básicas que lhe sejam necessárias.

Diante de um possível extermínio da humanidade, seja gradativamente, por degradação das condições necessárias à vida humana, seja sumariamente, pela abrupta supressão dessas condições, se reclama e conclama a solidariedade de todos os indivíduos e categorias da sociedade humana.

No processo crescente da socialização do estado contemporâneo, a evolução do estado liberal para o estado social de direito faz imperiosa a conscientização de todos da indispensável participação ativa de cada um. Não mais cabe aguardar a iniciativa dos governantes ou delegar-lhes com exclusividade o encargo de assegurar a função social dos direitos humanos. Esse dever é um encargo de todos e de cada um perante cada um e diante de todos.

Com esse passo – cuja concreção ainda falta ser implementada –, a evolução dos direitos humanos atinge o seu ápice, a sua plenitude subjetiva e objetiva. São direitos humanos plenos, de todos os sujeitos contra todos os sujeitos, para proteger tudo o que condiciona a vida humana, fixados em valores ou bens humanos como patrimônio da humanidade, segundo padrões de avaliação que garantam a existência com a dignidade que lhe é própria.

  1. O perfil familiar convencional

Apesar de todos os dogmas, princípios e regras, que buscam assegurar a primazia dos direitos humanos, a sociedade, em nome da preservação da moral e dos bons costumes, impõe padrões de comportamento restritos. Com seu perfil nitidamente conservador, cultua valores absolutamente estigmatizantes, insistindo em repetir o modelo posto.

Tal postura gera um sistema de exclusões baseado muitas vezes em meros preconceitos. Tudo o que se situa fora do estereótipo acaba sendo rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade. O que não se encaixa nos padrões aceitos pela maioria é apontado como uma afronta à moral e aos bons costumes. Essa visão polarizada é extremamente limitante.

Não se pode esquecer o que a sociedade fez com o negro: em face de sua cor, o tornou escravo. Também as mulheres foram – e ainda são – alvo de discriminações. Só em 1932 adquiriram a cidadania e até 1962 se tornavam relativamente capazes apenas ao casar. Também os filhos, até 1988, tinham direitos limitados, sendo rotulados por expressões ultrajantes pela singela circunstância de haverem sido concebidos fora de um vínculo de casamento de seus pais.

Principalmente no âmbito das relações familiares se evidencia a tendência de formatar os vínculos afetivos segundo os valores culturais dominantes em cada época. Por influência da religião, o Estado limitou o exercício da sexualidade ao casamento, uma instituição indissolúvel que regula, não só as seqüelas de ordem patrimonial, mas a própria postura dos cônjuges, impondo-lhes deveres e assegurando direitos de natureza pessoal, chegando ao ponto de invadir a privacidade do casal.

O vínculo que nasce por vontade dos nubentes é mantido após a solenização do matrimônio independente e até contra a vontade dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, só são deferidos a separação e o divórcio, ou após o decurso de determinado prazo, ou mediante a identificação de um culpado – o qual não pode tomar a iniciativa do processo – o que evidencia a intenção de punir quem simplesmente quer se desvencilhar do casamento.

A família consagrada pela lei – a sagrada família – é matrimonializada, patriarcal, patrimonializada, indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. Pelas regras do Código Civil, os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não adquirirem visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de marginais, nunca foram os vínculos afetivos extramatrimoniais reconhecidos como família. Primeiro se procurou identificá-los a uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.

Mesmo quando a própria Constituição Federal albergou no conceito de entidade familiar o que chamou de “união estável”, resistiram os juízes em inserir o instituto no âmbito do Direito de Família, mantendo-a no campo do Direito das Obrigações. A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como verdadeiras famílias, nem sequer por analogia – mecanismo que a lei disponibiliza como forma de colmatar as lacunas da lei – revela a verdadeira sacralização do conceito de família. Ainda que inexista qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, a negativa sistemática de estender a estes novos arranjos os regramentos do direito familial, mostra-se como uma tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões convencionais.

  1. O panorama social atual

O distanciamento do Estado em relação à Igreja – fenômeno chamado de laicização – bem como a quebra da ideologia patriarcal trouxeram como conseqüência a liberação dos costumes. A chamada revolução feminina, fruto tanto do movimento feminista como do aparecimento dos métodos contraceptivos, e a evolução da engenharia genética, que gerou formas reprodutivas independentes de contatos sexuais, acabaram por redimensionar o próprio conceito de família.

No contexto atual não mais se pode identificar como família apenas a relação entre um homem e uma mulher ungidos pelos sagrados laços do matrimônio. Rompidos os paradigmas identificadores da família, que se esteavam na tríade casamento, sexo e reprodução, necessário buscar um novo conceito de família.

A família não se restringe ao relacionamento com o selo da oficialidade, pois o Judiciário, ao emprestar juridicidade ao que era chamado de concubinato, impôs ao constituinte o alargamento do conceito de entidade familiar. Imperativo reconhecer que é a presença do vínculo afetivo a pedra de toque para a identificação de um elo de natureza familiar.

No momento em que se enlaça no conceito de família, além dos relacionamentos decorrentes do casamento, também o que a Constituição Federal chamou de uniões estáveis e as famílias monoparentais, mister albergar mais um gênero de vínculos afetivos, quais sejam, as relações homossexuais – hoje chamadas de relações homoafetivas – que merecem ser inseridas no âmbito do Direito de Família.

  1. A Justiça frente aos direitos não legislados

A sociedade, no momento em que se estrutura, buscando a concreção de seus fins, isto é, o bem comum, outorga a um poder o encargo de fazer justiça, o que, como diz Mauro Cappelletti, não é mera forma de acesso à justiça, mas, sim, de acesso a uma ordem jurídica justa. No entanto, ao se questionar se o Poder Judiciário se desincumbe do dever de dar a cada um o que é seu, a resposta negativa se impõe: no próprio âmbito da jurisdição os mais comezinhos direitos humanos são violados.

A lei não consegue acompanhar o acentuado desenvolvimento econômico, político e social dos dias de hoje, não tendo condições de seu arcabouço prever todos os fatos sociais dignos de regramento. Em particular, os vínculos interpessoais, são os mais sensíveis à evolução dos costumes, à mudança de valores e dos conceitos de moral e de pudor. Dada a aceleração com que ocorrem, as mudanças sociais escapam da legislação tradicional.

Em face das lacunas que acabam ocorrendo, o magistrado precisa se conscientizar de que as regras legais existentes não podem servir de limites à prestação jurisdicional. Quando o fato sub judice escapa da normatização ordinária, a resposta precisa ser encontrada nos direitos fundamentais que cada vez mais vêm buscando guarida nas Constituições. Não se trata de forma alternativa de se fazer justiça, mas de encontrar uma solução atendendo aos ditames de ordem constitucional.

Imperioso que as interpretações dos juízes sejam criativas.

Ante situações novas, buscar subsídios em regras ditadas para relações jurídicas diversas, tende a uma solução conservadora. Mas, tanto não reconhecer direitos sob o fundamento de inexistir previsão legal, como fazer uso de referenciais normatizados para situações outras e em diverso contexto temporal, nada mais é do que mera negação de direitos. Assim, é um dever da jurisprudência inovar diante do novo.

O surgimento de novos paradigmas leva à necessidade de rever os modelos preexistentes, atentando-se na liberdade e na igualdade como os pilares do direito, que estão calcados muito mais no reconhecimento da existência das diferenças. Essa sensibilidade deve ter o magistrado. Tomando como norte a necessidade de assegurar os direitos humanos em sua plenitude, subjetiva e objetiva, individual e social, imperioso pensar e repensar a relação entre o justo e o legal. Precisam os juízes arrostar as novas realidades que lhes são postas à decisão e não ter medo de fazer justiça para vencer a pecha – que não deve ser a realidade – de ser o Judiciário um poder incompetente e sacralizador de injustiças.

  1. A responsabilidade da função judicial

O paradoxo entre o direito vigente e a realidade existente, no confronto entre o conservadorismo social e a emergência de novos valores e novas estruturas de convívio, coloca os operadores do Direito diante de um verdadeiro dilema, em face da necessidade de implementação dos direitos de forma ampliativa.

A sociedade que se proclama defensora da igualdade é a mesma que ainda mantém uma posição discriminatória nas questões de gênero. Em decorrência de uma visão estereotipada da mulher, exige-se-lhe uma atitude de recato, sendo feita uma avaliação comportamental dentro de requisitos de adequação a determinados papéis sociais. Ainda se vislumbra nos julgados uma postura eminentemente protecionista que dispõe de uma dupla moralidade. Aparecem com freqüência os termos “inocência da mulher”, “conduta desregrada”, “perversidade”, “comportamento extravagante”, “vida dissoluta”, “situação moralmente irregular”, adjetivações essas ligadas exclusivamente ao exercício da sexualidade, questionamentos jamais feitos com relação ao homem. Assim são expressões que guardam uma forte carga ideológica, que desconsidera a liberdade da mulher.

Também nítida é a rejeição social à livre orientação sexual. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é marcado por um estigma social, sendo renegado à marginalidade por se afastar dos padrões de comportamento tidos por “normais”. Tal postura homofóbica decorre de mero preconceito que leva à inaceitação dos relacionamentos homossexuais, eis considerados uma afronta à moral e aos bons costumes. No entanto, é absolutamente discriminatório afastar a possibilidade de reconhecimento de uniões estáveis homossexuais. Trata-se de uma união que surge de um vínculo afetivo e gera um enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar um regramento legal.

Assim, ante a atual posição do homem e da mulher e as novas estruturações familiares, necessário uma revisão crítica e uma atenta avaliação valorativa do fenômeno social, para que se implemente a tão decantada igualdade.

Nesse contexto, é fundamental a missão dos operadores do direito, que necessitam tomar consciência de que a eles está delegada a função de agentes transformadores dos valores estigmatizantes que levam aos preconceitos sociais.

Na trilha do que venha a ser aceito pelos tribunais, como merecedor de tutela, acaba ocorrendo a aceitação social, o que vem a gerar, via de conseqüência, a possibilidade de se cobrar do legislador que regule as situações que a jurisprudência consolida.

Uma sociedade que se quer justa, livre, solidária, fraterna e democrática, não pode viver com cruéis discriminações, quando a palavra de ordem é a cidadania e a inclusão dos excluídos. Para cumprir esse lema, é fundamental a atuação dos juízes, que necessitam se conscientizar de que o estado de direito não é um simples estado de legalidade e a verdadeira justiça não é meramente formal.

 

Publicado em 22/12/2013.

 

 

[1] Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – BR

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

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