A consagração constitucional da homoafetividade

Maria Berenice Dias[1]

 

 

A experiência homossexual já foi identificada como uma doença, uma perturbação, uma maldição. Interpretada das formas mais diversas, muitos se lançam na aventura de tentar explicar a atração por pessoa do mesmo sexo, ou para justificá-la ou para encontrar formas de revertê-la.

A Classificação Internacional de Doenças – CID, que existe há pouco mais de um século, identificava o “homossexualismo” como um desvio ou transtorno sexual.  Abandonada a ideia de ver a homossexualidade como doença, passou a ser encarada como uma forma de ser diferente da maioria, diferenciando-se apenas no relacionamento amoroso e sexual. Em 1993 a OMS – Organização Mundial da Saúde inseriu-a no capítulo Dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais. Na 10.ª revisão do CID-10, em 1995, foi nominada entre os transtornos psicológicos e de comportamento associados ao desenvolvimento e orientação sexual (F66), constando uma nota: A orientação sexual por si só não é para ser considerada como um transtorno. E, de há muito, o sufixo “ismo”, que designa doença, foi substituído pelo sufixo “dade”, que significa modo de ser. Ainda assim ainda persiste quem utiliza equivocadamente a expressão com o fito mesmo de externar postura discriminatória e preconceituosa.

O último censo revelou a existência de 60 mil famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo. Mas o número não importa. Apesar do preconceito de que são alvo, da perseguição que sofrem, da violência de que são vítimas, não há como condenar à invisibilidade e deixar parcela da população fora do âmbito da tutela jurídica. . É o que diz a Constituição Federal ao consagrar os princípios da liberdade e da igualdade e proclamar respeito à dignidade da pessoa humana. Já no seu preâmbulo, assegura uma sociedade pluralista e sem preconceitos. Também garante, como um dos objetivos fundamentais da República, uma sociedade livre e justa, que deve promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça sexo, cor idade ou qualquer outra forma de discriminação.

Todos estes princípios serviam para qualquer um, menos para gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. O covarde silêncio do legislador, que se nega a aprovar leis que atendam as minorias alvo de discriminação, sempre alimentou o preconceito. Basta lembrar que data do ano de 1995 o primeiro projeto de lei que, tal qual um punhado de tantos outros, vagaram pelas casas legislativas sem nunca terem sido levados à votação. A maioria foi arquivada. Atualmente existem 16 projetos em tramitação, sem que se vislumbre a possibilidade de serem aprovados. Nem mesmo o que criminaliza a homofobia.  A única referência se encontra na Lei Maria da Penha que conceitua família como relação íntima de afeto, independente da orientação sexual.

Mas sempre foi severa a resistência dos advogados em atender ao segmento homossexual. Com a desculpa de que não existe lei, e que a Justiça não lhes reconhecia direitos, sempre desestimulavam os clientes a buscarem a tutela jurídica. Daí o acanhado número de ações que batiam às portas do Poder Judiciário.

No entanto, no início deste século, em face de algumas decisões que se notabilizaram pelo vanguardismo, teve início a construção do direito homoafetivo como um novo ramo do direito. Em um primeiro momento as uniões foram identificadas como sociedades de fato para posteriormente migrarem para o âmbito do direito das famílias, graças ao IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família que enlaçou no conceito de famílias as uniões homoafetivas. A partir do momento em que começaram a se formar Comissões da Diversidade Sexual no âmbito da Ordem dos Advogados em todo o país, houve um derrame de ações em juízo.

Pode-se dizer que a homoafetividade saiu mesmo do armário quando o Supremo Tribunal Federal a reconheceu como uma entidade familiar, em decisão com eficácia vinculante (ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Brito, j. 05.05.2011). A decisão que se transformou em um marco histórico como garantia dos direitos humanos, interpretou conforme a Constituição o dispositivo do Código Civil que regula a união estável, para excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre duas pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. A comunicação feita pelo Presidente do STF a todos os tribunais e juízes, reafirma a eficácia contra todos e o efeito vinculante do julgamento e assevera: Este reconhecimento é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.

Depois do pronunciamento da Corte Suprema, o grande questionamento que surgiu foi sobre a possibilidade ou não de os homossexuais casarem. Para os conservadores de plantão, teriam sido assegurados aos homossexuais os direitos da união estável, o que não lhes garante acesso ao casamento.

Mas juízes sem medo de preconceitos fizeram um silogismo singelo: se a Constituição Federal determina que seja facilitada a conversão da união estável em casamento, e o Supremo Tribunal determinou que não fosse feita qualquer distinção entre uniões hétero e homoafetivas, não tiveram dúvida em cumprir a recomendação constitucional, obedecer a decisão da Corte Suprema e assegurar o direito à felicidade a quem há muito havia constituído uma família e desejava casar.

Este é o significado das recentes sentenças, uma de Jacareí e outra de Brasília, proferidas por magistrados comprometidos com a justiça e com o resultado ético de seus julgamentos.

Mais uma vez o Poder Judiciário deste país cumpriu com o seu papel de ser guardião dos princípios constitucionais que devem reger a sociedade, mesmo quando a lei é omissa. Afinal, não se pode viver a tirania do Legislativo, em que os juízes se curvem às tentativas de segmentos que se escudam atrás de preceitos religiosos para disfarçar posturas homofóbicas e discriminatórias.

 

Publicado em 02/03/2010.

[1] Advogada

Presidenta da Comissão da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB

Vice-Presidenta Nacional do IBDFAM

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